Não há uma tradição que se possa expressar sequer em idioma português, nem o próprio conceito que lhe dá nome se atreve a encontrar tradução para a língua de Pessoa. Não existe passado nem presente na história dos “thinks tanks” em Portugal (é por isso a primeira e última vez que usaremos aspas na palavra). Um país onde não é preciso ter ideias, mas cunhas; onde quem manda é o Estado; em que se entra pela porta do ministro quando se quer obter algo. Think tank parece ser assim uma expressão anglo-saxónica vazia de conteúdo, espalhando uma espécie de “think blank”, num país onde a maioria não sabe sequer o que é. As criticas são de sociólogos e economistas contactados pelo Negócios. Os elogios, em tom de esperança de início de projecto, saem da boca – e também muito do coração - dos responsáveis por aquilo a que os jornais têm chamado de “think tank” políticos.
“Com esta dimensão e com esta ambição, não sendo algo pontual, é uma coisa nova em Portugal”, acredita António Vitorino, presidente da Fundação Res Publica, o novo think tank socialista, apresentado segunda-feira no CCB lisboeta, com alguma pompa e ansiada circunstância, pelo secretário-geral do PS, José Sócrates. Com o projecto ainda em fase embrionária, “um projecto que nasce claramente numa área política”, António Vitorino vive por estes dias encantado com o seu Res Publica: “Esperamos que produza resultados num horizonte de curto prazo”.
Menos rosa, e não apenas pela cor política que lhe sintetiza os ideais, é o panorama aos olhos de Pedro Passos Coelho (PSD), mentor da plataforma “Construir Ideias”, a que muitos – ele próprio? - começaram a chamar think tank. “Tem essa ambição, mas um think tank não se constrói de um dia para o outro, não nasce com essa configuração. É um estatuto que não se adquire por passo de mágica”, frisa o candidato derrotado por Manuela Ferreira Leite nas últimas eleições directas do PSD. Apesar de elogiar o surgimento do Res Publica socialista, o social-democrata Passos Coelho adverte para o risco de ele se tornar apenas num “instrumento legitimador” de posições já adoptadas pelo governo.
“Os organismos à volta do PS ou do PSD não são think tanks: são uma espécie de corte, como a que os reis dantes mantinham à sua volta”, atira Maria Filomena Mónica, que “no sentido próprio do termo” diz não conhecer qualquer think tank em Portugal. Para a socióloga do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o organismo que por cá mais se aproxima de um think thank é a SEDES. “Mas tem funcionado de forma demasiado intermitente para se poder dizer que desempenhou uma função na luta de ideias”, considera. “Há, depois, fenómenos como o Compromisso Portugal, que atravessam o céu como cometas”, acrescenta. “Tenho as maiores dúvidas em considerar este movimento com um think tank”, corrobora José Reis, economista do Centro de Estudos Sociais (CES). “Trata-se de um movimento politico, profundamente ideológico, que defende a sua dama: o liberalismo e os interesses privados”.
“Depois existem instituições que funcionam como lobbies e que, por isso mesmo, pertencem a outro universo”, conclui Filomena Mónica. “Aliás, sendo Portugal um país pequeno, a melhor forma de se obter o que se quer é entrar destemidamente pela porta do gabinete do ministro, o qual é sempre amigo, primo ou colega de alguém que se conhece”.
Think tank mas poucoEm estado puro, um think tank trata-se de uma instituição plural formada a partir da sociedade civil, com ‘staff’ próprio, que produz conhecimento de uma forma regular no intuito de promover o debate sobre políticas públicas. Os seus estudos e análises científicas devem ser independentes e imparciais, ainda que a instituição que os produz possa assumir determinados valores ideológicos, considera André Freire, sociólogo e investigador do ISCTE. “Um think tank deve ser formado por um conjunto plural de interesses, mas também não é necessária uma santa e beata independência”, sustenta, por sua vez, José Reis. “É uma arma ideológica, um tanque que, em vez de disparar balas, atira ideias”, compara Maria Filomena Mónica.
Muitas das próprias instituições alcunhadas de think thanks assumem não o ser. É o caso da SEDES. “Somos uma associação cívica imparcial, com grupos de trabalho e tomadas de posição. Mas não temos investigação própria”, diz Luis Barata, secretário-geral da entidade. “Penso que não existem verdadeiros think tanks em Portugal, mas sim movimentos de reflexão que são igualmente úteis”, acrescenta. “Quero acreditar que esses movimentos são, na sua essência, imparciais com uma perspectiva despretensiosa e desinteressada. Caso contrário, caem em descrédito”. “Não conheço nenhum em Portugal que se possa assumir como tal. Falta o financiamento, equipas permanentes e dedicadas em full-time. Não basta ter esse nome, é precisa uma estrutura profissional que implica encargos muito elevados”, concorda Tiago Macedo, do Novo Portugal, um movimento conjunto da ANJE e da SEDES, que reúne uma centena de jovens elites até aos 45 anos.
O Compromisso Portugal (CP) é e não é. Confuso? “Será um think tank no sentido de ter promovido, a partir de um núcleo inicial de cidadãos livres e independentes, uma discussão aprofundada e estruturada sobre uma nova visão para o País, nomeadamente quanto ao seu modelo económico-social”, explica António Carrapatoso. “O CP não será um think tank no sentido de não ter uma organização formal e um staff próprio com actividade permanente, de não produzir investigação de base e de não ter uma garantia de continuidade prevista a médio prazo”.
O Instituto da Democracia Portuguesa (IDP) assume-se como um think tank, responde Frederico Carvalho, dirigente do instituto fundado no ano passado e presidido por D. Duarte de Bragança. “Não somos monárquicos. Temos pessoas independentes e com filiação em partidos de todo o espectro político, divididas por vários grupos de trabalho. Temos protocolos com diversas organizações cívicas e promovemos debates locais”, salienta.
Também a INTELI se posiciona como um think thank, sustenta Catarina Selada: “Somos uma associação privada sem fins lucrativos, com independência financeira, através de projectos co-financiados e prestação de serviços, e temos uma rede de recursos humanos especializados”.
A voz de Filomena Mónica diz-nos que “a sociedade civil está-se nas tintas para os think tanks e a maioria dos portugueses não sabe o que são nem quer saber”. Mais comedido, também José Reis fala numa sociedade civil fraca, sem tradição de associativismo, sem controvérsia política, sem reflexão de fundo. Luís Barata acrescenta: “As pessoas não estão habituadas a trabalhar em grupo. Vivem em quintas. Basta olhar para a dispersão de associações sindicais e empresariais, acrescenta. “A sociedade tem sempre precisado ou dependido da mão do Estado”, diz José Reis. É ele que manda em tudo, frisa Filomena Mónica. “O elevado peso do Estado na sociedade e a capacidade que os governos têm para o utilizar, para de uma forma mais ou menos explicita condicionar ou mesmo retaliar contra os cidadãos que expressam as suas livres opiniões, é um grande factor de inibição da intervenção da sociedade civil”, sustenta Carrapatoso, o mentor do Compromisso Portugal. Numa outra perspectiva, Passos Coelho puxa a brasa à sua sardinha política: “Se não houver um interesse real pela prática política perde-se o estímulo. Fora dos partidos é mais difícil que sobrevivam”.
Quem trabalha em think tanks “a sério”, como Sandra Fernandes, investigadora portuguesa do Centro de Política Europeia, em Bruxelas, um dos think tanks de referência a nível mundial, lança um olhar de fora para dentro e chama a atenção para um outro “problema português” da protecção excessiva de dados em determinadas áreas, que acaba por minar a produção e a sua qualidade. “Um think tank é um lugar de grande abertura e flexibilidade em que a concorrência prima sobre os feudos pessoais. Em Portugal ainda há dificuldade em lidar dessa forma com o trabalho de investigação”, critica.
O financiamento parece ser outro entrave. Em Portugal, os movimentos aspirantes ao estatuto de think tanks vivem do voluntariado dos seus membros. Para Tiago Macedo, do Novo Portugal, o problema é que uma reflexão imparcial exige financiamento que não seja dependente: “Sabemos que quem financia gosta de intervir”. Os poucos estudos produzidos são patrocinados, na sua maioria, por empresas, ao abrigo dos seus programas de responsabilidade social. Como contrapartida, têm o seu nome publicitado. O que também é uma forma de transparência, salienta o secretário-geral da SEDES. “Mas nem assim é fácil”, ressalta. “O financiamento para a criação e sobrevivência de think tanks relativamente independentes, com ‘staff’ e meios próprios significativos, é difícil de obter”, frisa António Carrapatoso, esclarecendo que o CP apenas obteve receitas com os patrocínios para as duas convenções que realizou e com a venda do livro ‘Revolucionários’. A Res Publica do PS ainda está a dar os primeiros passos, mas António Vitorino admite, sem alarmismos de momento, que “para sustentar os estudos que serão pedidos, a fundação terá que recorrer a doações e candidatar-se a desenvolver programas”.
Texto (não editado) publicado hoje no Jornal de Negócios
*trabalho conjunto com Lúcia Crespo.