2.10.09

O fado melancólico da vitória 'pê-ésse'


Foto: Pedro Elias

O uniforme de cor 'bordeaux' esconde-se na entrada do corredor de serviço do hotel Altis - qual gato-escondido-de-rabo-de-fora -, os óculos ovais, bem presos à carne facial, ampliam-lhe os olhos vivos que espreitam pela fresta formada pela porta entreaberta. Com ar divertido, uma decana funcionária joga sozinha o jogo do gato e do rato, para não aparecer nos directos televisivos que aguardam a chegada dos 'notáveis' do PS para a longa noite eleitoral. "É sempre a mesma confusão", resume a senhora de meia-idade, anos suficientes para ter assistido ali a inúmeras celebrações socialistas. Está sem tempo para conversas demoradas e curiosas: quando se apagam as luzes vermelhas das câmaras serpenteia entre os jornalistas, com a vassourinha e a pá na mão para apanhar as folhas secas que o vento faz cair das árvores.

Ainda faltam duas horas para as primeiras projecções às oito da noite, as urnas ainda nem sequer encerraram, mas a concentração de figuras do partido já começou: o ex-ministro da Saúde, António Correia de Campos, um dos primeiros a sair do governo, é dos primeiros a chegar. Entra pela mesma porta que os apoiantes ditos anónimos e sem o material de propaganda na mão. O marketing 'Sócrates2009', com as cores da República, luta com as mais tradicionais bandeiras de um vermelho-vivo, que trazem estampado há largos anos o velho punho socialista. Augusto Santos Silva, que ficará, entre outros, com o cognome de 'ministro da propaganda', já chegou ao Altis. Não será, porém, o homem que exortou o partido a "malhar" nos adversários o que retrai Jorge Ribeiro. Será, isso sim, as circunstâncias. Veste umas calças de ganga já muito gastas e uma t-shirt branca (não menos coçada e onde já não se lêem algumas letras) da sua cooperativa. Tem medo que o barrem à entrada do hotel, logo ele, que deambulou ao final da tarde pelas sedes do PS e PSD. Com passagem última pelo hotel Vitória, onde se concentra a CDU. Também ele já foi comunista, até ao final dos anos 80, e apesar de ter boas memórias da vitória que deu a reeleição a António Guterres em 1999, recorda com saudades o antigo homem do aparelho, Jorge Coelho, e com maior nostalgia ainda o movimento de massas comunista. "No PCP era mais fácil mobilizar, PS e PSD são mais burgueses".

Burguês é como chega Manuel Pinho, ao pôr-do-sol - poucos notam a entrada do seu carro de alta-cilindrada na garagem; mais desenvergonhada é a saída para o meio do povo em festa, já ao final da noite, para ser vivamente felicitado, e recolher, também ele, os louros da vitória nas urnas. Alvo preferencial das conversas de café depois do episódio dos 'corninhos' a Bernardino Soares no Parlamento, o ex-ministro da Economia devolve um sorriso à provocação brincalhona: "Já voltou a trabalhar?".
São já os ecos da descontracção da vitória. Que começou estrondosa, com gritos de histeria, pulos de satisfação e felicitações trocadas ao telemóvel. O PS sempre era ainda o partido mais votado após quatro anos e meio de desgaste político. Depois os festejos foram baixando de volume, à medida que se confirmava a esperada perda da maioria absoluta somada à impossibilidade de negociar acordos parlamentares apenas com um partido à Esquerda. Governar à esquerda só a três e isso tirou brilho a um José Sócrates, ainda assim aclamado, já bem perto da meia-noite, no cimo de um palco improvisado num camião, que ocupara já a rua entretanto cortada ao trânsito. Mas a caravana socialista, depois de milhares de quilómetros na estrada, já não iria cumprir a curta distância até ao Largo do Rato, onde há quatro anos se tinha festejado efusivamente a primeira maioria absoluta do PS. Com festejos tímidos e a melancolia do "e agora?", Sócrates preferiu enganar o trago agri-doce da vitória com um bitoque, em vez de prolongar a fome num passeio até ao Rato.

"Há uma semana ganhar por um voto já era bom, com as últimas sondagens a expectativa aumentou", comenta em tom nervoso um dos 'boys' candidato a um 'job' socialista. Mais velho nos seus 69 anos, Vasco Santos, cujo único 'job' na política foi o de secretário da junta de freguesia da Ventosa (Alenquer) "numa altura em que não se ganhava nada", não sabe ao certo qual a margem da vitória nas urnas, mas não tem pejo em classificá-la como "uma goleada à Benfica". Tinha ouvido apenas os primeiros ecos da satisfação chegados do interior do Altis, onde só mais tarde conseguiu entrar por breves instantes. "Disseram-nos da Juventude Socialista que podíamos entrar para comer. Chegámos lá e já não havia nada", lamenta a esposa, que o acompanha "nos bons e maus momentos", na política e no estádio da Luz. De boné e mochila com as cores benfiquistas, Vasco está agora mais interessado em comentar a goleada da véspera contra o Leixões e a violência dos jogadores adversários.

Entrada "a pés juntos" tinha sofrido o PSD de Manuela Ferreira Leite, que acompanhava os resultados num hotel ali perto. O próprio copo da alegria socialista estava já meio vazio quando no Altis volta a aumentar-se o som das televisões. A líder laranja prepara-se para assumir a derrota. É chegado o momento da catarse, alimentado pela atracção da tragédia e pela queda dos poderosos. Nos rostos não há sorrisos vitoriosos, percebe-se o respeito pela maior derrotada da noite. "Está numa situação difícil, os seus dias estão contados", vaticina Jorge Fonseca, manager da EMA Partners, que não é militante do PS "mas é como se fosse".

Ministros e anónimos transpiram agora juntos na sala da cave onde é aguardado o secretário-geral para o discurso da vitória. O suor escorre no peito de um jovem roliço que tem a camisa branca parcialmente desabotoada. Está num grupo de 'jotas' que vai recebendo a actualização dos resultados no Blackberry e apontando-os no verso de um talão de Multibanco. "A minha mãe é professora, proibi-a de ir votar nestas eleições. Felizmente ela faz o que lhe digo". "A minha também", confirma outro, de barba controladamente crescida. Sócrates irrompe na sala e interrompe o bocejo generalizado ao proclamar uma "vitória extraordinária". A expressão do outrora "animal feroz", hoje um líder na pele de cordeiro - "tenho a maior vontade de ouvir os outros partidos" / "Obrigado senhores jornalistas" - deixa a impressão de pouco convencer. Fora do hotel algumas centenas de apoiantes à espera ouvem o apelo à atenção do proprietário do veículo 52-38-ML para se dirigir imediatamente para junto do mesmo. "Sócrates vem aí!", 'speaker' de serviço anuncia a 'superstar' da noite. Euforia, apertos e de novo a excitação.
Schhssss! Silêncio que se vai cantar o fado.

Reportagem publicada no WEEKend, suplemento de 6feira do Negócios