8.8.08

Ao Yun Hui Kuaile!


A chegada a Pequim são versos de um poema que não rima com facilidades: no moderníssimo aeroporto internacional de Pequim sou arrastado em direcção ao parque de estacionamento para apanhar um táxi privado para o hotel, onde nenhum dos quatro recepcionistas articula uma frase no (julga o resto do mundo) universal inglês; nos primeiros banhos revigoro a pele com amaciador de roupa convencido que se trata de gel de banho; vou ao supermercado e compro um garrafão de cinco litros de aguardente satisfeito por pensar levar para casa água mineral. Não são suficientes vinte anos de uma proclamada “política de abertura e reformas” - que abriu às multinacionais de todo o mundo as portas de um apetecível mercado interno de 1,3 mil milhões de consumidores e injectou incontáveis dólares e euros nas veias de uma economia que se prepara para ultrapassar a Alemanha no terceiro posto do ranking dos monstros económicos mundiais – não são suficientes essas migalhas do tempo que são duas décadas, dizíamos, para o rectilíneo, lógico e previsível mundo ocidental compreender e abraçar a velha e misteriosa China. Uma nação ancestral que sobreviveu ao poderoso exército mongol, não vergou perante as invasões dos vizinhos e inimigos japoneses, nem a pragas e catástrofes devastadoras, e que já vivia 16 séculos antes de Cristo nascer nas palhinhas de Belém.

Mas é esta mesma China, comunista de forma, que já não destrói sofás como outrora – o outrora em que eram considerados mobiliário burguês – e em que às crianças já não se ensina que o inglês é a língua imperalista e elas brindam cada estrangeiro com um estridente “hello”, esta China que se reflecte todos os dias no espelho do mandarim como Império do Meio (Zhong Guo) e que ensaia um “sistema capitalista de características chinesas” (designação oficial do socialismo arquitectado no final dos anos 80 por Deng Xiaoping), é ela que se quer mostrar ao mundo nestes Jogos Olímpicos. A China que se engalanou e preparou afincada e meticulosamente desde 2001, que reconstruiu bastante e reconfigurou ainda mais a sua cidade mais importante, o orgulho e símbolo de todo o império amarelo, apenas com a missão de dar corpo a um evento desportivo internacional que irá durar 16 efémeros dias. Os seus “Ao Yun Hui”, formados pelas iniciais das “palavras” olímpico, desporto e encontro.

À semelhança de uma embalagem de amaciador de roupa, ainda que vendida numa loja do francês “Jia Le Fu” (leia-se Carrefour), em que o rótulo não permite compreender coisa alguma aos olhos que não identificam mais do que os caracteres de “Bei Jing” (capital do norte), também a China só mostra o seu verdadeiro interior e o seu puro conteúdo após a abertura da “embalagem”. Ao chegar sente-se um estranho nó aspero na garganta, como se se tivesse bebido água por uma mangueira de gasolina. É a poluição, dizem, numa cidade onde quem fuma um maço de cigarros contabiliza 90 cigarros nos pulmões ao final do dia, pois 70 ficam por conta da poluição carburada pelos milhares de fábricas que ocupam os arrabaldes sujos e terceiro-mundistas da capital chinesa e pelos milhões de automóveis que entopem as largas e modernas avenidas de Pequim, as mesmas que fazem corar de vergonha a feita estreita Avenida da Liberdade lisboeta.

Primeiro aviso: tem que se corresponder a todos os brindes de “bai jiu”, uma indescritivelmente forte aguardente feita à base de arroz, bebida com que se festeja tudo na China, desde casamentos ao fecho de um negócio. Nem que no final do almoço do casamento, festejado numa sala de hotel com “wedding” escrito a letras rosa no fundo do palco, se acabe embriegado, consequência do ‘jet lag’, pois claro, a passear junto ao túmulo de Mao Zedong, em plena praça Tiananmen, o centro político de toda a China. Segundo aviso: só se come a tijela de arroz no final da refeição, é só para encher a barriga. Desta vez fica mesmo o insulto aos dotes da cozinheira, a mesma que preparou uns rugosos intestinos de pato e que depois veio à mesa explicar que o chumbinho encontrado entre a carne dos dumplings era “uma peça que se soltou da varinha mágica”. É tempo de mostrar compreensão: apesar deste autêntico país-continente ter submetido as suas cidades a verdadeiras operações plásticas nos últimos anos, “perder a face” continua a ser a pior desonra para um chinês. E ainda que seja perdoado, nunca é esquecido. Concedemos.

A China política, liderada com punho de ferro por Hu Jintao na presidência e Wen Jiabao no governo, aproveita as Olimpíadas abre ao mundo as janelas de uma cidade desenhada e sombreada pelo declive acentuado entre os arranha-céus que crescem, os arrojados projectos arquitectónicos que aqui têm liberdade para florescer e os antiquíssimos “hutong”, os bairros típicos recuperados no centro de Pequim que vergam à especulação imobiliária e vão sendo comprados por muitos estrangeiros, que para eles têm dinheiro. Todavia, um em cada cinco habitantes do planeta – a estatística permite tudo isto - já conhecem esta realidade, pelo que os Jogos são, antes de mais, uma legitimição do Partido Comunista Chinês no poder aos olhos de 1,3 mil milhões de eleitores sem direito de voto. Uma legião que olha com distanciamento para a fotografia amarelecida da Nova China fundada a 1 de Outubro de 1949 pelo Grande Timoneiro Mao Zedong. Onde subiu pela primeira vez a bandeira vermelha-estrelada, hoje apenas os turistas compram o pequenino Livro Vermelho com as citações e as teorias de Mao, as dele e as que roubou aos companheiros da Longa Marcha, que aniquilou para se assumir como figura máxima na refundação do país. A 30 quilómetros de Tiananmen, para lá do sexto dos anéis rodoviários que circundam Pequim, o restaurante “O Leste é Vermelho” recria num enorme pavilhão o ambiente da Revolução Cultural. Há um espectáculo de época com muitas bandeiras vermelhas, a decoração é recuperada ao pormenor, os sabores da comida fazem também recuar umas décadas, os empregados vestem os trajes recuperados, à imagem da juventude maoísta que engrossou o exército vermelho. Em 2008, ano dos Jogos Olímpicos em Pequim, tudo isto é “kitsch”, tudo isto é o espelho da sociedade chinesa que emerge nas grandes cidades do país, tão ou mais cosmopolitas do que as grandes capitais da Europa. Uma sociedade competitiva e pragmática, que veste Hugo Boss e ouve no iPod os últimos hits da pop norte-americana.
Quando, a 24 de Agosto, cair o pano dos Olímpicos, nenhum chinês questionará para que serviram os 11 mil milhões orçamentados para limpar o ar da cidade. Os trabalhadores migrantes das províncias mais recônditas, que ajudaram a erguer a cidade olímpica e foram expulsos de Pequim algumas semanas antes da cerimónia de abertura, voltarão para continuar a construir a capital. E o Nan Jie, um famoso bar entre os “laowai”, como os pequinenses chamam aos estrangeiros que vivem na cidade e que foram também obrigados a abandoná-la durante os Jogos, vai voltar a encher-se quando as autoridades retomarem a concessão de vistos para entrar no país. Pelo menos até o Nan Jie ser demolido uma terceira vez, como das outras vezes para ali se construir mais uma urbanização de prédios altos e modernos. Por aquelas janelas espelhadas, a grande cidade-sede olímpica continuará a espreitar, vibrante e irresistível, embrenhada naquela misteriosa e quase imperial cortina cinzenta.


Texto (não editado) publicado hoje no Jornal de Negócios.

1 comment:

Anonymous said...

E o mundo verga-se aos poucos a um mundo que desconhece, que questiona...e nós, já lowais passados pela Zhongguó, revivemos todas as questões com resposta na ponta da língua, de quem saboreou Pequim de forma intensa e inesquecível. A Bola!