2.4.09

a crise em casa

Nas três assoalhadas do n.º 161 da lisboeta rua Tomás da Anunciação, na exígua e acolhedora casa dos Raimundo, nunca morou uma família da classe média folgada, “dessas que já foi passar férias ao Brasil”, mas o baixo, o reduzido e o mingar entram cada vez mais no léxico que usam para classificar a classe social do agregado. Tal como nas férias se ficam agora pelo “sol ali da Costa”. “Nos últimos anos sentimo-nos a encostar mais abaixo na classe média”, relata Ana Maria Raimundo, a mãe de 56 anos, que há mais de três décadas trocou o silêncio de Arraiolos pelas luzes da capital.
Os últimos anos de que fala a funcionária pública, que recentemente passou do serviço de contabilidade para o aprovisionamento do Ministério da Agricultura, foram aqueles em que se congelaram as progressões e os salários na função pública. “Foi sempre um balde de água fria a cada aumento, o meu vencimento sempre foi uma gota de água no orçamento da casa”, admite. Após 36 anos “de serviço” ficará a viver a partir de Setembro com os 700 euros mensais que lhe dão o pedido de reforma antecipada do Estado.
António Manuel Raimundo, electricista, é o patriarca da família e o homem das reparações em casa “que nos poupam muito dinheirinho”. Com a crise e os constantes aumentos dos preços e das despesas do agregado, confessa, já chegam ao final do mês sem dinheiro e esperam pelo pagamento das horas extraordinárias que faz nas centrais térmicas da EDP, empresa onde tem “a sorte de ter um emprego fixo há 32 anos”. “Se não for o dinheiro dessas horas – a esposa interrompe a conversa - as nossas poupanças ficam delapidadas e entramos muitas vezes em saldo negativo”. Vão todos os dias para o trabalho no carro da empresa ou de transportes públicos e a viatura de 18 anos da família só sai do lugar aos fins-de-semana. “Quem suporta o aumento dos combustíveis é o pessoal que trabalha”, frisa António, para quem a escalada do preço da gasolina se deve à “especulação que veio depois da guerra no Iraque”.
Dona Ana lembra as pequenas mudanças que acolheu na sua vida, as coisas comezinhas que são aquelas de que se recorda e que mais atrapalham: “Comer fora o pequeno-almoço passou a ser um luxo, já não o faço. São três euros de cada vez, 600 escudos na moeda antiga, lembra-se?”. Dão primazia à alimentação e ao vestuário, mas roupa nova só compra se houver disponibilidade “senão anda-se com as botas do ano passado”. “Não nos excedemos mas também não nos privamos de coisas essenciais por enquanto. Mas já estivemos mais longe disso”, lamentou Ana Maria. E a conta do supermercado?
É António Raimundo que se antecipa agora e rouba a palavra à mulher de sempre, mãe dos seus três filhos. “Notamos que gastamos mais. Há um ano atrás, com o mesmo dinheiro comprávamos muito mais coisas”, diz quem assume as idas ao supermercado para preparar os petiscos alentejanos que lhe lembram a infância em Arraiolos.

O medo pelos filhos
Com Cláudia Sofia, a mais velha de 29 anos, a viver fora de casa dos pais, Ana Maria, mãe-galinha, teme pelo futuro dos dois filhos mais novos. Não tem dúvidas de que “eles vão viver pior que os pais”, e o que mais a assusta é a precariedade e a insegurança no trabalho.
O desgosto do pai António, explica, é que o filho Luís, 27 anos, não tenha optado por uma área mais técnica. Vive ainda em casa dos pais, estuda geologia - “um curso que não chove nem molha” – e agora trabalha também a tempo parcial num call-center. O pai sorri, porém, ao lembrar “o filho armado em pintor” que cobriu com as suas telas o quarto único onde dormem os filhos. Criou um blogue onde tenta vender os quadros que pinta nas horas vagas e o pai admite no final que o filho “até não tem assim muito mau jeito”. A Cátia, de 16 anos, é a menina da família, “que já não é nenhuma menina”, corrige logo a seguir a mãe Ana Maria, que não esconde a esperança de remodelar a decoração do quarto, que espera há anos. “Ao fim destes anos todos pensava que os nossos rendimentos já dessem para fazer uma conta a prazo”, resume.


Reportagem publicada no Jornal de Negócios em Junho de 2008

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