Sessenta anos após a assinatura e proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem em Paris, todo essa humanidade e a sua descendência esperam ainda que o mesmo ideal, sonhado e saído das feridas da segunda e última declarada guerra mundial, essa carta plena de impressionante e crua actualidade que já dobrou um século, enfim se cumpra. Na circunstância do sopro das velas sexagenárias, o desejo mais ou menos secreto a pedir reafirma-se, como um espelho de seis décadas, com a aguda consciência de que nenhuma sociedade pode aspirar ao progresso e à justiça sem que o iluminado respeito pelos direitos humanos veja a claridade dos dias.
"A libertação da discriminação por motivos de raça, cor, sexo, linguagem, religião, opinião política ou de outra índole, origem nacional ou social, posição económica, nascimento ou qualquer outra condição – as promessas da Declaração Universal – permanecem como um objectivo difícil de alcançar para muitas pessoas em todo o mundo. Os direitos à liberdade de expressão, de associação e de reunião, que são indispensáveis para o funcionamento da sociedade civil, continuam debaixo de ataque sustentado em todas as regiões do mundo", resume ao weekEnd a Alta-Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Navi Pillay. Os mesmos atropelos que fazem ainda tremer os alicerces da atitude universalista cravada no ADN da Declaração continuam a ser denunciados pela Amnistia Internacional. O relatório de 2008 mostra que as pessoas ainda são torturadas ou maltratadas em, pelo menos, 81 países, enfrentam julgamentos injustos em, pelo menos, 54 países e são proibidas de se expressar livremente em, pelo menos, 77 países. Um diagnóstico sombrio projectado na voz de Irene Khan, secretária-geral da organização: "Os governos devem mostrar hoje o mesmo grau de visão, de coragem e de compromisso que levou as Nações Unidas a adoptar a DUDH há sessenta anos".
Não será por esta razão considerada a cidade-luz, mas foi na capital francesa que a 10 de Dezembro de 1948 o mundo viu nascer a declaração que Eleanor Roosevelt acreditava "poder bem tornar-se a 'Magna Carta' de todos os homens em toda a parte". Um ano depois da morte do marido e de abandonar a Casa Branca, a antiga primeira dama norte-americana, apoiante das políticas do "New Deal" de Franklin Delano, tornou-se a primeira mulher a chefiar a comissão dos Direitos Humanos da ONU. O calendário viu correr mais dois anos de trabalho até chegar aquele Dezembro em que Eleanor, ladeada por René Cassin e John Peters Humphrey, apresenta a compilação dos 30 artigos que os países da ONU consideram ser os direitos garantidos de todos os habitantes do planeta. Aquele que viria a tornar-se o documento mais traduzido em todo o mundo (certificação garantida pelo livro de recordes do Guiness), é viabilizado sem votos contra pelos 56 Estados integrantes da Assembleia Geral das Nações Unidas, com 48 votos favoráveis e a abstenção dos seis países do bloco soviético, a União Sul Africana e a Arábia Saudita. Sem se assumir como um tratado ou um acordo internacional, a verdade é que "a escassez prática da invocação legal ou constitucional da Declaração foi largamente compensada pelo intensivo significado simbólico-político que se lhe associa". E este mesmo carácter moral e idealista, na opinião do constitucionalista Bacelar Gouveia, faz com que a segunda metade do século XX fique "indelevelmente assinalada" como um dos períodos de maior progresso da humanidade.
Em 1948 Portugal não era ainda membro das Nações Unidas – a admissão só viria a ser conseguida a 14 de Dezembro de 1955 – pelo que a votação da Declaração não convocava a nação para uma tomada de posição pública, mantendo-se o país à margem da discussão, da ratificação e também do próprio respeito pelos direitos humanos, após 48 anos de uma traumática ditadura com atropelos aos direitos fundamentais, em especial os de coloração política. No advento da democracia em Abril de 1974, uma das principais preocupações dos parlamentares constituintes era a de garantir a efectiva protecção dos direitos, reflectindo-se esta ânsia na profusão de propostas apresentadas nos dois anos seguintes para projectos de Constituição e na unânime generosidade do texto constituinte nacional em sede de direitos fundamentais. Em Novembro de 1976, Mário Soares e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Medeiros Ferreira, assinam a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Três décadas volvidas, nem toda a legislação e prática de progressos faz o país escapar ao diagnóstico crítico da Amnistia Internacional. "Mantêm-se impunes casos de violência contras a mulheres e episódios de maus tratos policiais", assinala o documento, que refere ainda a passagem em solo nacional de voos da CIA transportando alegados terroristas.
A eurodeputada socialista Ana Gomes tem assumido uma das vozes políticas mais críticas sobre o transporte e as práticas de tortura a prisioneiros, sobretudo na base militar norte-americana de Guantanamo, em Cuba. "Os governos [europeus] que passam a vida com os direitos humanos na boca têm impedido a descoberta da verdade porque são cúmplices", acusa, fazendo questão de "separar as águas entre os que defendem situações aberrantes como Guantanamo e os outros que denunciam que não vale tudo e somos diferentes dos terroristas". Ao weekEnd, a ex-embaixadora em Jacarta que assumiu na década de 90 papel diplomático de relevo no processo de independência de Timor, refere que os direitos humanos continuam bem presentes no discurso político contemporâneo, mas "infelizmente há um grande desfasamento entre a retórica e a prática", exemplificando com a "hipocrisia resultante das prisões secretas". A alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos admite igualmente "sérias falhas na implementação". "Devemos reconhecer que por vezes os direitos humanos são postos de parte em nome da segurança", frisa Navi Pillay.
O mundo contemporâneo coloca novos desafios à carta dos direitos humanos? Ana Gomes sublinha a "responsabilidade de proteger" e mostra-se contra os "espíritos arreigados à soberania dos Estados", pois, defende, quando estes falham na protecção dos cidadãos a comunidade internacional tem a obrigação de intervir. Se encarnasse Eleanor Roosevelt na história, Ana Gomes não mudaria nada. "Se houvesse algo a acrescentar seria algumas práticas relativas à protecção dos activistas dos direitos humanos que são aqueles que estão mais vulneráveis", corrige, logo de seguida, a mulher que o "The Parliament Magazine" distinguiu recentemente com o Prémio Eurodeputados 2008 na categoria de 'Activista do Ano'.