2.4.09

a crise no centro de emprego

Um prolongado e preguiçoso bocejo matinal encontra reflexo na montra espelhada do centro de emprego do Conde do Redondo, em Lisboa. A meio da manhã, o Sol de Inverno, que já bate em força e de frente nos olhos, desenha um retrato mais luminoso da monotonia de mais um dia para acrescentar a tantos outros. As pontas de cigarros, fumados até ao filtro da infinita paciência, morrem agora na tradicional calçada portuguesa, como ponteiros de um relógio que assinala as horas de espera por um trabalho que se perdeu.
Localizado bem nas entranhas da capital, este centro de emprego é apontado como um modelo do bom funcionamento, distante, muito distante, do ponto mais real de saturação que outros atingem dia após dia, com o avolumar das estatísticas do desemprego. A crescente desertificação das freguesias que abrange, nas imediações do Marquês de Pombal, considera-se neste texto o factor número um; a estrutura económica, assente nos serviços, restauração e turismo, completa a panorâmica deste oásis. “Aqui não sentimos o que vemos na televisão”, atesta Rui Coelho, director do centro de emprego, com a memória a ocupar-se da lembrança de mais uma abertura de telejornal noticiando novos despedimentos em massa. No Conde Redondo, onde são atendidas diariamente uma média de 200 a 250 pessoas por dia, começa também a notar-se uma maior afluência, expressa em números redondos, entre 5% a 10%, pelo responsável do centro. Nos primeiros dias de Março, Rui Coelho vai ser obrigado a actualizar estas percentagens. É no início dos meses que têm surgido mais novos inscritos, depois de verem interrompido o outrora estável vínculo laboral.
Apesar dos dois anos que já passaram, Joaquim Baltazar lembra-se bem do momento em que a empresa onde trabalhava “não se aguentou” e interrompeu abrupta um ininterrupto e orgulhoso ciclo de dedicação profissional ao ofício de empregado de escritório: dos 18 aos 54 anos. As contas que durante anos se habituou a fazer com a calculadora faz agora de cabeça e em repetição magoada. “Tenho mais um ano de fundo de desemprego, até Fevereiro de 2010”. “Para o ano chego aos 40 anos de descontos para a Segurança Social e pode ser que meta os papéis para a reforma antecipada”. Nos últimos dois anos preencheu o tempo numa instituições particular de solidariedade social; segunda-feira ficou a saber que passará os dias em programa ocupacional numa junta de freguesia “ali para os lados da Feira da Ladra”. Sai contente do centro de emprego, com o sol, que agora vai mais alto, a testemunhar o novo sorriso. Acende um cigarro – o bigode amarelado que lhe tapa o lábio superior denuncia a condição do vício –, o último da espera, e segue rua abaixo. Ao desemprego já perdeu esperança de virar costas: “Não acredito que vá arranjar emprego este ano. Querem alargar a idade da reforma, mas na prática já não somos válidos porque ninguém nos quer”, atira do alto dos seus 56 anos.
Lá dentro, ainda de senha branca na mão, há um madeirense a piorar as estatísticas do centro de emprego do Conde Redondo. “Era pior se fosse a cor-de-rosa”, tonalidade que, em suprema ironia cromática, identifica o número para atendimento de novos inscritos. Está bem disposto, nota-se bem, com aquela aura própria dos que ainda vivem dos sonhos. Mesmo que o sonho, já antigo e para o qual não basta uma mão para contar em anos, tenha surgido do pesadelo do despedimento. Empacotou os poucos pertences que os curtos 27 anos de vida lhe permitiram acumular, e voou para Lisboa. Na capital vive ainda o “Lisbon dream”, versão menos colorida que o congénere norte-americano em épocas idas, mas fascinado pelas novas oportunidades que acredita existirem abundantes em território continental. E maravilhado também com a nova independência, que exclui porém aquela financeira, já que vive ainda com a ajuda do pai. O subsídio de desemprego, 65% do que antes ganhava como contabilista no Funchal após sete anos de trabalho acumulado que se seguiu ao curso profissional na área, esta prestação social esgota-se todo nos custos de sobrevivência. Um mês de busca intensa em Lisboa ainda não lhe rendeu a tal oportunidade, mas não é ainda capaz de lamentar as trocas que deu ao destino ao deixar esquecida nas ruas do Funchal a ambição anterior de emigrar para Londres ou Barcelona.
O Sol quando nasce é para todos, dizem. Não interessa a condição social, económica ou, neste caso, o seu reflexo na empregabilidade. Mas em Sintra, a poucas dezenas de quilómetros do oásis do Conde Redondo, muitos acordaram antes do nascer do astro apenas para reservar um lugar, ainda que pouco solarengo, à porta do centro de emprego para serem os primeiros a recolher uma senha. Ao ritmo da fatalidade do destino e de um serviço público lotado, que não consegue dar resposta à multidão desempregada vinda na enxurrada da crise, assistem depois ao lento movimento solar até à hora de atendimento. “Em Sintra há muita gente, está tudo congestionado”, confirma Carlos Azevedo, que o centro de emprego da vila histórica enviou ontem a uma entrevista no centro de emprego de Picoas. Ao lado, um homem suspira, “senão valha-nos Deus”, aliviado por se poder apresentar quinzenalmente numa associação da freguesia. Amanhã o Sol volta a nascer para todos. Haja ou não emprego, com ou sem senha na mão.


Reportagem publicada no Jornal de Negócios em Fevereiro de 2009

a crise em casa

Nas três assoalhadas do n.º 161 da lisboeta rua Tomás da Anunciação, na exígua e acolhedora casa dos Raimundo, nunca morou uma família da classe média folgada, “dessas que já foi passar férias ao Brasil”, mas o baixo, o reduzido e o mingar entram cada vez mais no léxico que usam para classificar a classe social do agregado. Tal como nas férias se ficam agora pelo “sol ali da Costa”. “Nos últimos anos sentimo-nos a encostar mais abaixo na classe média”, relata Ana Maria Raimundo, a mãe de 56 anos, que há mais de três décadas trocou o silêncio de Arraiolos pelas luzes da capital.
Os últimos anos de que fala a funcionária pública, que recentemente passou do serviço de contabilidade para o aprovisionamento do Ministério da Agricultura, foram aqueles em que se congelaram as progressões e os salários na função pública. “Foi sempre um balde de água fria a cada aumento, o meu vencimento sempre foi uma gota de água no orçamento da casa”, admite. Após 36 anos “de serviço” ficará a viver a partir de Setembro com os 700 euros mensais que lhe dão o pedido de reforma antecipada do Estado.
António Manuel Raimundo, electricista, é o patriarca da família e o homem das reparações em casa “que nos poupam muito dinheirinho”. Com a crise e os constantes aumentos dos preços e das despesas do agregado, confessa, já chegam ao final do mês sem dinheiro e esperam pelo pagamento das horas extraordinárias que faz nas centrais térmicas da EDP, empresa onde tem “a sorte de ter um emprego fixo há 32 anos”. “Se não for o dinheiro dessas horas – a esposa interrompe a conversa - as nossas poupanças ficam delapidadas e entramos muitas vezes em saldo negativo”. Vão todos os dias para o trabalho no carro da empresa ou de transportes públicos e a viatura de 18 anos da família só sai do lugar aos fins-de-semana. “Quem suporta o aumento dos combustíveis é o pessoal que trabalha”, frisa António, para quem a escalada do preço da gasolina se deve à “especulação que veio depois da guerra no Iraque”.
Dona Ana lembra as pequenas mudanças que acolheu na sua vida, as coisas comezinhas que são aquelas de que se recorda e que mais atrapalham: “Comer fora o pequeno-almoço passou a ser um luxo, já não o faço. São três euros de cada vez, 600 escudos na moeda antiga, lembra-se?”. Dão primazia à alimentação e ao vestuário, mas roupa nova só compra se houver disponibilidade “senão anda-se com as botas do ano passado”. “Não nos excedemos mas também não nos privamos de coisas essenciais por enquanto. Mas já estivemos mais longe disso”, lamentou Ana Maria. E a conta do supermercado?
É António Raimundo que se antecipa agora e rouba a palavra à mulher de sempre, mãe dos seus três filhos. “Notamos que gastamos mais. Há um ano atrás, com o mesmo dinheiro comprávamos muito mais coisas”, diz quem assume as idas ao supermercado para preparar os petiscos alentejanos que lhe lembram a infância em Arraiolos.

O medo pelos filhos
Com Cláudia Sofia, a mais velha de 29 anos, a viver fora de casa dos pais, Ana Maria, mãe-galinha, teme pelo futuro dos dois filhos mais novos. Não tem dúvidas de que “eles vão viver pior que os pais”, e o que mais a assusta é a precariedade e a insegurança no trabalho.
O desgosto do pai António, explica, é que o filho Luís, 27 anos, não tenha optado por uma área mais técnica. Vive ainda em casa dos pais, estuda geologia - “um curso que não chove nem molha” – e agora trabalha também a tempo parcial num call-center. O pai sorri, porém, ao lembrar “o filho armado em pintor” que cobriu com as suas telas o quarto único onde dormem os filhos. Criou um blogue onde tenta vender os quadros que pinta nas horas vagas e o pai admite no final que o filho “até não tem assim muito mau jeito”. A Cátia, de 16 anos, é a menina da família, “que já não é nenhuma menina”, corrige logo a seguir a mãe Ana Maria, que não esconde a esperança de remodelar a decoração do quarto, que espera há anos. “Ao fim destes anos todos pensava que os nossos rendimentos já dessem para fazer uma conta a prazo”, resume.


Reportagem publicada no Jornal de Negócios em Junho de 2008